Vivíamos, eu e a minha mulher, à sombra do vulcão. A vida era boa e generosa, pois tínhamos muita comida: insetos, plantas suculentas e fruta. Havia várias pessoas e partilhávamos com eles o dia-a-dia. Mas um dia, o vulcão resolveu acordar com um rugido diabólico que vinha do interior da terra. Alguns ruídos eram tão fortes que éramos levados pelo ar pelas ondas de choque. Ficámos muito assustados, eu e a minha mulher, por isso, fugimos e escondemo-nos num cantinho e aí ficámos, muito juntinhos, à espera do que se ia passar. Os rugidos não paravam e com eles os tremores de terra. Por vezes, parecia que vinha um ser terrível das trevas para nos levar. Com a agitação da chão veio o burburinho das pessoas, que não paravam de andar de um lado para o outro. Fugiam e consigo levavam as suas coisas. Depois, do seu interior, a terra vomitou rios de fogo. Era lava quente e incandescente que escorria do vulcão. O calor era imenso, mas nós, muito encolhidos conseguíamos sobreviver. Eu já tinha sobrevivido a outras erupções que resolvem visitar-nos a cada 20 ou 30 anos. Conseguimos sobreviver a quase tudo, menos à maldade. Ficámos vários dias escondidos, mas, por insistência da minha mulher, acabámos por decidir fugir, pois tínhamos medo que o terror continuasse para sempre e já tínhamos saudades da nossa vidinha calma. Depois de muito conversarmos sobre o assunto, ficou decidido que iriamos aproveitar a próxima boleia e desceríamos para um local mais seguro e com um futuro mais risonho. Apanhámos o primeiro carro que passou e muito quietinhos fugimos. A confusão era generalizada, mas o caminho e o objetivo de todos era fugir. Depois de várias horas nas filas, conseguimos descer até perto do mar, onde tudo estava mais calmo. Saímos do carro em São Filipe e logo nos pusemos à procura de local para viver. Havia muita escolha e demorámos alguns dias a percorrer várias casas até nos decidirmos. Escolhemos um hotel, muito bonito e pacato. A vista era soberba, para o mar e para o vulcão e, finalmente sentíamo-nos em segurança. Escolhemos o quarto mais confortável. Tinha muita mobília antiga e agradável. Também havia comida que chegasse. Estávamos, por isso, felizes. Um dia chegaram umas pessoas muito barulhentas e inquietas, que nos incomodaram, pois não gostavam de nós. Andávamos sempre a fugir para não ser vistos, mas fora isso, estava-se bem. Certa manhã, acordei mais tarde e não vi logo a minha mulher, pois tinha saído mais cedo para dar uma volta. Mas de repente, vejo-a a correr em pânico para mim. Foi tudo muito rápido e terrível. Um homem ia a correr atrás dela para a matar. Nem queria acreditar e disse-lhe para fugir, mas quando ela estava quase a conseguir, um enorme sapato caiu repetidamente em cima dela. Ela esperneava retorcida, enquanto lhe batiam freneticamente. Ouvi a sua carapaça ser esmagada com um som terrível, que já tinha ouvido no passado. O homem só parou quando teve a certeza que a tinha matado. Eu olhava com terror para a cena, como se não pudesse ser verdade, como se não fosse a minha mulher. Não podia ser! Simplesmente não podia ser verdade que tinha morrido! Quando todos se foram embora saí a correr para a ver, mas já não havia nada a fazer. As suas patinhas e as antenas ainda se mexiam, mas a sua carapaça estava esmagada e os seus sucos estavam espalhados à volta do seu corpo. Mexi-lhe, falei-lhe, berrei-lhe e nem som. Chorei longamente a sua morte, pois ia ter muitas saudades da sua companhia e do seu cheiro. O seu odor, que se tornava cada vez mais intenso, inebriante e apetecível, à medida que se ia esvaindo. Então, não consegui conter-me, enlouqueci e comi-a toda. No fim recolhi-me satisfeito ao meu cantinho, pois tinha tido uma mulher barata realmente deliciosa!